A JORNADA DO HERÓI (ENTRE IDAS E VINDAS, ENTRE QUEDAS E SUBIDAS)

 

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Hoje quero falar sobre influências, este assunto é bastante amplo e facilmente confundido com plágio ou falta de originalidade, pois é muito tênue a linha entre a inspiração e a falta de honestidade. Considero, por exemplo, que a tarefa de composição musical, ou o ato de redigir uma obra literária, consiste em um terreno muito delicado e propenso a coincidências e similaridades não intencionais, dado o fato dos milhares de anos de produção cultural e intelectual dos diversos povos que habitaram e que ainda vivem em nosso planeta ao longo de nosso processo histórico. Aqui no blogue já comentamos sobre o livro O herói de mil faces (1949) em uma postagem sobre os mitos e representações criados pelo homem, e que influenciaram os contos modernos sobre super seres e demais criaturas fantásticas que povoam a imaginação de autores a várias gerações. Apolo, Thor, Buda e outros numerosos protagonistas das religiões, das mitologias, dos contos de fada e do folclore universal, representam simultaneamente as várias fases de uma mesma história, o relacionamento entre as várias narrativas registradas e os elementos presentes em mitos de criação de mundo que se assemelham entre si, independente se determinadas civilizações mantiveram contato ou não, é o ponto de partida da interpretação oferecida por Joseph Campbell, reconhecidamente um dos maiores estudiosos e mais profundos intérpretes da mitologia universal, nesse clássico obrigatório para compreender esse monomito que é a jornada do herói.

Recentemente, eu iniciei a leitura do que é considerado uma das obras primas da literatura de ficção, me refiro a Admirável Mundo Novo, um romance escrito por Aldous Huxley e publicado em 1932. A história se passa em Londres no ano 2540, o romance antecipa desenvolvimentos em tecnologia reprodutiva, hipnopedia, manipulação psicológica e condicionamento clássico, que se combinam para mudar profundamente a sociedade. Ao iniciar a leitura, tive um sentimento de intenso déjà-vu, quando da passagem das páginas, algo me pareceu imensamente repetido e sem originalidade, algo que prontamente me repreendi por faze lo, visto que se tratava de um romance da primeira metade do século XX. O motivo de tão estranha sensação, nada mais é do que o fato de eu ter tido primeiramente contato com outras obras inspiradas e influenciadas por ela, ou seja, filmes, séries e toda sorte de material midiático impresso ou digital.

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O processo histórico se desenrola de maneira pendular, a humanidade já experimentou diversas formas de organização politica e social, algumas se mantem firmes devido a força da tradição e outras se renovam mantendo seu caráter institucional, mas sendo reinterpretadas, englobando as demandas e necessidades das novas gerações. Sendo assim, as grandes marcas detentoras de direitos autorais e os grandes estúdios cinematográficos, tem a necessidade de renovarem seus produtos e torná-los atrativos para um novo público, e assim continuarem gerando riqueza e capital, para a manutenção e perpetuação de sua influência sobre diversos setores da economia, não apenas a produção de filmes e séries.

Na virada dos anos 90 para os 2000, uma prática que já era utilizada, mas que a partir de então se tornaria muito mais recorrente, são as adaptações e “remakes”de obras advindas de outras mídias, como por exemplo a música e a literatura, além é claro dos filmes e séries produzidos no passado, muitos durante a aurora do cinema, que ganham cores, revisões e reinterpretações, claro que nem todas as tentativas conseguem o sucesso desejado, ou são rejeitados pelo público e critica de maneira a se considerar que a obra original ainda seria a melhor versão a ser consumida e degustada pelo público. Diante de tudo isso, questiono qual será o limite da originalidade? Ele existe? 

Claro que eu considerei as várias vertentes e segmentos de cada uma das formas de arte, mesmo as que não são consideradas “cults” ou refinadas e sofisticadas, seja lá o que isso signifique, ao ponto de serem aceitas pelos críticos ou intelectuais especializados, até mesmo o entretenimento gráfico visual e sonoro, dedicado a públicos menos exigentes, ou que simplesmente não ligam nem se importam com questões gerais e paradoxos existências, tem seu mercado saturado e repletos de bandas genéricas, ou alguma programação televisiva que produz sempre os mesmos formatos e modelos a vários anos, essa observação se aplica a todos os segmentos de nossa sociedade, existe uma grade, um esquema que se “renova” não no sentido de evoluir para a discussão de temas que contribuam para a emancipação do sujeito, mas sim na forma de repaginar o modelo que dá certo, afinal, como diz o ditado popular, não se mexe em time que está ganhando.

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Tenho me detido ao cinema e aos serviços de Streaming, pois são os exemplos que mais se aproximam de nosso dia a dia, mas o mesmo acontece com com tudo a nossa volta, o próprio modo de nos vestirmos e agirmos se alterna a cada década ou menos, vemos as novas gerações repetindo erros e acertos, diferenciando se da nossa apenas pela maneira de consumir conteúdos e produtos que por sua vez foram adaptados para a sua realidade. Agora, imagine nossa rotina, o modo como administramos nossas vidas, em geral, somos socializados dentro de uma estrutura que nos condiciona, primeiro a família, depois a escola e em seguida constituímos família, assim como nossos pais e avós, não a nada de errado nisso, só quero ilustrar meu raciocínio, pois de certa forma, vivemos seguindo um esquema que de tão interiorizado nos parece algo que sempre existiu, e que não há outra forma de nos organizarmos. Para cada inovação tectonológica, o futuro oferece a normatização e adequação, até o momento que uma outra renovação aconteça, e é claro que nos habituaremos a ela, no sentido de a assimilarmos de maneira objetiva. Acredito que todos nós estamos fazendo o melhor que podemos, e que somos sinceros em nossas ações, mesmo que em alguns momentos não tenhamos consciência disso, visto que já nascemos dentro dessa estrutura que condiciona de maneira objetiva nossos papéis sociais, mesmo que sejamos livres para “sair do roteiro” é raro que isso aconteça, e quando isso acontece, este individuo é considerado “diferenciado” dado sua divergência ao modelo comum vigente em sua realidade.

No inicio deste texto, me referi à jornada do herói, e ao monomito, que é a forma como Joseph Campbell explicou como as diversas culturas, em diferentes períodos históricos, compartilham um mesma narrativa de explicação de sua cosmologia, ou seja, de tudo ao seu redor, e nós, não estamos distantes desses povos, em nossa pós modernidade e contemporaneidade, repetimos modelos, seguimos roteiros, reescrevemos a historia segundo nossa perspectiva, e nos sentimos desbravando mares nunca antes navegados, com a certeza de que ninguém além de nós passa pelos trancos e barrancos que a vida nos impõe. Acreditamos estar enfrentando algo inédito, sem nos darmos conta do jogo no qual estamos de maneira involuntária inseridos, as pegadas dos viajantes de outrora foram encobertas pelo tempo, e não há mapas nem sinais que nos guiem, pelo menos é isso que nos parece, talvez devêssemos olhar mais para o passado, afinal, ele está sempre em constante movimento, e frequentemente nos ultrapassa em nossa jornada, enquanto o futuro permanece estático, um lugar distante onde acreditamos estar nossa melhor versão, este não muda, pois não há como nos desapontarmos nem nos frustrarmos com ele, justamente por este não ser, pelo menos em um primeiro momento, aquilo que chamamos de realidade.

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