RESENHA DO FILME “HOTEL RUANDA”

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HOTEL RUANDA. Direção, Terry George. Produção, Terry George e A. Kitman Ho. Reino unido, África do Sul, Itália: Lions Gate Films Inc. 2004, 121 min.

                                                                                                                         
Devemos sempre tomar bastante cuidado ao opinarmos sobre questões que estão longe de nossa realidade e contexto, pois, é recorrente o fato de sempre interpretarmos e julgarmos o outro com base em nossa vivência, isso que chamamos de etnocentrismo, permeia nossas decisões e atitudes. O exercício de um olhar imparcial e na medida do possível neutro, é necessário para uma abordagem critica e objetiva sobre determinada situação ou fenômeno, seja ele macro ou microssocial. É extremamente fácil cometermos o erro de considerar os países do continente Africano como sendo atrasados e precários economicamente, sem considerar que sua atual situação, mas não em sua totalidade, é o resultado de seculos de exploração colonial, no período da chamada era moderna, que se inicia com a expansão marítima por parte das grandes potências europeias a partir do século XV.

Hotel Ruanda, retrata um triste episódio fruto em parte desse legado colonial, o país fora dominado por muitos anos pela Bélgica, e a politica adotada pelo colonizador foi a de apoiar um determinado grupo étnico, prática comum aos estrangeiros que almejassem dominar e explorar certa região, isso foi feito tanto nas Américas quanto na Ásia, em vários momentos do processo histórico mundial. No caso de Ruanda o grupo beneficiado, foi a etnia denominada tutsis, em detrimento de outro grupo conhecido como hutus.

Em certo momento do filme, um breve dialogo explica superficialmente essa condição, os belgas escolheram os habitantes de pele um pouco mais clara, e com traços aproximados aos seus, para serem aliados no controle da região. Em meados de 1930, os belgas começaram a identificar as pessoas e a distribuir uma espécie de carta de identidade, e para reinar, inventaram a teoria da divisão. Os tútsis reinavam, disseram até que eles, os Tutsis, eram mais inteligentes, muito próximos ao europeu e que tinham o nariz muito fino em comparação ao dos hutus, diziam que os hutus tinham um nariz em tripé, muito largo, os belgas segundo relatos, se utilizaram de instrumentos para medir o tamanho. Sendo assim, depois de vários processos, a influência belga se extingue, ainda mais pelo acontecimento de sua independência em 1962. Mas a rivalidade entre as duas etnias só aumentou, e o período retratado no filme são os anos 90, época em que o neoliberalismo ganhava força em várias partes do mundo.

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O filme trata do “genocídio em Ruanda” que é como ficou conhecido internacionalmente os acontecimentos entre sete de abril até quatro de julho de 1994. Logo nos primeiros minutos, pode-se observar o contraste entre duas realidades, uma sendo a dos moradores de bairros melhor assistidos na questão de infraestrutura, e outra sendo a de moradores de áreas rurais. Não existe uma definição objetiva do que separa Tútsis e Hutus, visto que membros de ambos se relacionam em várias estâncias da vida social, mas é mostrado que existem indivíduos que fazem questão de se definir como sendo pertencente a um determinado grupo. Essa dicotomia é retratada ao longo de todo o filme, um contraste entre cultura e aculturação fica bastante claro, principalmente na figura do protagonista que é uma pessoa razoavelmente bem-sucedida, que se orgulha de ter “bom gosto” e de dominar certos códigos de etiqueta e práticas dos estrangeiros, mas, nunca transparecendo soberba ou arrogância, pelo menos essa é a leitura do diretor sobre o personagem real Paul Rusesabagina, interpretado por Don Cheadle.

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Outro elemento bem retratado no filme, é a presença dos assim chamados boinas azuis, que são um braço militar da Organização das Nações Unidas (ONU), criado durante a década de cinquenta, essa força conjunta conta com a colaboração de 124 países, e atualmente possui um efetivo de 122 mil integrantes. Apesar de eles terem autoridade, fica evidente a conflituosa relação entre eles, a polícia local e o exército nacional, além é claro dos grupos armados paramilitares conhecidos como milícias. A burocracia internacional limita a ação das forças de paz estabelecidas na região, normatização esta que não dialoga de maneira eficaz com o a situação em todo o país. A figura da antiga metrópole se faz presente na figura do Hotel des Mille Collines, de propriedade da companhia aérea belga Sabena, durante o conflito, muitos refugiados buscaram socorro em suas dependências, e este curiosamente demorou a ser atacado, devido o receio de um retorno do exército belga, essa situação permitiu que pessoas de ambos os grupos étnicos ficassem em relativa segurança durante um certo tempo, e a convivência instável entre eles é retratada, em um claro estado de anomia, onde as regras sociais, tão caras a Paul Rusesabagina, gerente do hotel, se fragmentam colocando em risco a todos.


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Podemos identificar vários conceitos ao longo dessa história, o de aculturação, que em linhas gerais é a assimilação, por parte do indivíduo, de valores e práticas externas a sua cultura local, é um dos abordados, isso fica explícito quando vemos o protagonista, tentando manter a rotina e com isso alguma noção de racionalidade, enquanto um estado de caos se estabelece em todo o território. Apesar do realismo e da dramaticidade da obra em questão, o caso foi bastante documentado pela imprensa internacional, e há relatos de que os acontecimentos foram mais trágicos. O filme levanta questões relacionadas conceitos como os de: nacionalidade, cultura, estado e globalização, no sentido de discutir como em pleno século XX, uma tragédia como a retratada no filme, pode acontecer, sem apontar diretamente culpados, a história segue enfatizando que os indivíduos, principalmente os mais influentes com poder efetivo para mudar alguma coisa, agem em favorecimento de seus próprios interesses, e é claro que esse comportamento pode ser observado em várias situações em outros contextos, mas aqui ele é determinante, até mesmo na proteção dos refugiados do Hotel des Mille Collines, pois, a intervenção direta do gerente Paul Rusesabagina, explorando as vaidades e motivações de pessoas influentes, proporcionou a sobrevivência de um grande número de pessoas.


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O filme teve uma boa recepção, e ganhou diversos prêmios, como por exemplo o prêmio do Sindicato de Produtores da América, e o prêmio Stanley Kramer, e após seu lançamento quando exibido a alguns sobreviventes, entre eles funcionários do hotel durante o massacre, o comentário foi de que apesar de que, por se tratar de uma obra de ficção, mesmo que baseada em acontecimentos reais, alguns elementos ficaram fora de contexto, o que é até perdoável, visto que a divulgação do que aconteceu pode contribuir para que tragédias como a ocorrida em 1994 não se repitam. E segundo a opinião dos próprios sobreviventes, o que foi retratado no filme, foi feito de maneira moderada, não traduzindo o horror e desespero daqueles dias.



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