UMA RETROSPECTIVA SOBRE O CPC DA UNE NO CONTEXTO DA CULTURA BRASILEIRA

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Este trabalho toma por base dois autores que abordam a atuação do Centro Popular de Cultura da UNE. Eles são Manoel T. Berlinck e Renato Ortiz, este com uma visão mais crítica em relação ao CPC da UNE. Manoel Tosta Berlinck formou-se Bacharel em Ciências Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1958-1961), Mestre em Ciências Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1964), Ph. D. (Development Sociology) pela Cornell University (1969). Professor de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (1972-1992). Diretor do IFCH da UNICAMP (1972-1976). Renato Jose Pinto Ortiz possui graduação em Sociologie – Universite de Paris VIII (1972), mestrado em Sociologia-École des Hautes Études en Sciences Sociales (1972) e doutorado em Sociologia/Antropologia- École des Hautes Études en Sciences Sociales (1975). Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas.

INTRODUÇÃO

O mito fundador de uma Nação pode se originar em qualquer signo ou em determinado aspecto que tenha o potencial e a capacidade de chamar para si as atenções ou mais precisamente causar no inconsciente popular certo sentido de unidade e de referência para que, a partir dele, mesmo sabendo de sua natureza fictícia, se construa ou, pelo menos, se tente engrenar um projeto de nacionalização, justificando assim sua soberania. Mas quem está apto a decidir tal símbolo? Qual categoria de “iluminados” pode se considerar digna de decidir o que deve traduzir um povo e representá-lo mundo afora? Isso requer um estudo à parte, pois em vários momentos nos deparamos com situações onde com extrema naturalidade poucos decidem o destino de muitos e em nosso inconsciente coletivo isso soa como natural, quase uma coisa inata a nossa sociedade, seja na experiência de governo representativo, seja nas decisões familiares tradicionais onde a palavra dos mais velhos ainda, de alguma forma, tem poder de lei. As atuais configurações trazem inúmeros exemplos de como uma elite, em todos os sentidos que o termo agrega, toma para si o papel quase que messiânico de cuidar do povo, ou então de se entender como sendo a única capaz de decidir pelos menos instruídos e consequentemente pelos menos afortunados que, segundo as elites, não são capazes de discernir sobre a melhor forma de administrar, governar e também de se organizar. Dessa maneira, somos o “país do futebol”, um povo alegre de natureza cordial como afirma Sérgio Buarque, que destaca a importância da herança cultural da colonização lusitana no Brasil, construindo a ideia de que a “cordialidade” típica dos brasileiros levou a uma relação problemática entre instâncias públicas e privadas. Essa questão da identidade nacional do brasileiro remonta aos tempos da colônia, quando a classe dominante procurava se igualar aos portugueses, aos ingleses, depois com os franceses e hoje com o povo americano.

O CPC E A CULTURA BRASILEIRA

A criação do Centro Popular de Cultura (CPC) acontece no governo de João Goulart, em um contexto de forte mobilização política, com a expansão das organizações de trabalhadores, no campo e nas cidades. As classes médias, sobretudo intelectuais e estudantes, estão presentes nos partidos políticos, e o Partido Comunista Brasileiro (PCB) ocupa lugar de destaque no quadro cultural da época e atrai formadores de opinião, como jornalistas, artistas e profissionais liberais em geral e em entidades como a própria União Nacional dos Estudantes (UNE). A militância política e o engajamento cultural andam de mãos dadas, os temas do debate político ecoam diretamente nas produções artísticos culturais. Essa situação difere da “utopia desenvolvimentista” dos anos 1950, que estimulava o diálogo cerrado dos intelectuais com a técnica, com a indústria e com o mercado. A ideia do CPC tem origem no grupo paulistano chamado Teatro de Arena. As insatisfações de alguns integrantes com o próprio grupo, que, apesar dos esforços, permanece um “teatro de classe média”, levam à montagem da peça de forte caráter didático chamada: A Mais Valia Vai Acabar seu Edgar, (uma clara referência ao conceito teórico de Karl Marx), de Oduvaldo Vianna Filho e Chico de Assis, com música de Carlos Lyra (1939), encenada no Teatro da Faculdade Nacional de Arquitetura, no Rio de Janeiro, em 1960.

Para a concepção da peça, (acredita-se que para dar base cientifica ao desenvolvimento do tema) é convidado a participar Carlos Estevam, então sociólogo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). O grupo então reunido organiza, em seguida, um curso de filosofia com José Américo Pessanha, realizado em auditório cedido pela UNE. Os debates ao longo do curso dão forma à ideia do CPC, que se beneficia de outras experiências, sobretudo a do Movimento de Cultura Popular (MCP), fundado no Recife por Germano Coelho, Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, Abelardo da Hora, Aloizio falcão, Paulo Freire, Francisco Brennand e Luís Mendonça, este era ligado a Secretaria de Educação do Município. O golpe militar de 1964 provoca o fechamento do CPC, a prisão de artistas e intelectuais, e o exílio político. Mesmo assim, ecos do projeto cepecista reverberam em iniciativas posteriores, como no célebre show Opinião, em 1964, de Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes, que reúne Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão.

AS DEFINIÇÕES SOBRE A ARTE

A pretensão do CPC da UNE era revolucionar a cultura, torná-la mais contextualizada com a realidade brasileira, no entanto o povo não era visto como criador, apenas como receptor de conteúdos já elaborados para conscientizá-lo da realidade nacional. É o que se concebe das obras em análise, que também mostram o que foi essa experiência, como as influências e as motivações de seus idealizadores constituíram seu modo de lidar com seu “público-alvo”. Carlos Estevam afirma que antes de qualquer coisa é necessário distinguir com clareza as características que diferenciam a arte do povo da arte popular e, ambas, da arte praticada pelo CPC a que ele chama de arte popular revolucionária. A arte do povo é, para Estevam, predominantemente um produto das comunidades economicamente atrasadas e floresce de preferência no meio rural ou em áreas urbanas que ainda não atingiram as formas de vida que acompanham a industrialização. O traço que melhor a define é que nela o artista não se distingue da massa consumidora. Artistas e público vivem integrados no mesmo anonimato e o nível de elaboração artística é tão primário que o ato de criar não vai além de um simples ordenar os dados mais patentes da consciência popular atrasada. Para este autor, a arte do povo é tão desprovida de qualidade artística e de pretensões culturais que nunca vai além de uma tentativa tosca e desajeitada de exprimir fatos triviais dados à sensibilidade mais embotada. É ingênua e retardatária e na realidade não tem outra função que a de satisfazer necessidades lúdicas e de ornamento.

A arte popular, na concepção do cepecista Estevam, por sua vez, se distingue da arte do povo não apenas pelo seu público que é constituído pela população dos centros urbanos desenvolvidos, como também devido ao aparecimento de uma divisão de trabalho que faz da massa a receptora improdutiva de obras que foram criadas por um grupo profissionalizado de especialistas. A arte popular, por sua vez, mais apurada e apresentando um grau de elaboração técnica superior, não consegue, entretanto, atingir o nível de dignidade artística que a credenciasse como experiência legítima no campo da arte, pois a finalidade que a orienta é a de oferecer ao público um passatempo, uma ocupação inconsequente para o lazer, não se colocando para ela jamais o projeto de enfrentar os problemas fundamentais da existência.

Considerada como a cultura "desalienada", a arte popular revolucionária admite que desempenha um papel revolucionário na sociedade pelo simples fato de existir como cultura não falsificada. Afirma que seu sentido revolucionário não está na apresentação explícita de soluções para os problemas sociais, nem na formulação de palavras de ordem que signifiquem uma instigação direta para a prática política concreta e imediata, ela acredita que seu papel revolucionário é satisfatoriamente desempenhado na medida em que ela reflete, de maneira não tendenciosa as relações do homem com o mundo e consigo mesmo e consegue reproduzir num quadro fiel os fatos e as estruturas possíveis de serem captadas pela razão e pela sensibilidade.

ESTRUTURAÇÃO DA CULTURA POPULAR

A estrutura e a composição da cultura popular são determinadas pela finalidade que constitui a sua própria razão de existir. Assim, são atribuições de Estevam, no quadro da cultura popular, todas as atividades relativas à formação da consciência ativa das massas. Todos os objetos, ideias, obras, organizações, símbolos, comportamentos, valores, atitudes e tudo mais que visa, precípua e diretamente, a elevar o nível de compreensão e atuação política da massa, tudo que a leva à percepção do movimento real da história como algo que se confunde com o seu destino. Para não se transformar em simples cultura-para-trabalhadores, a cultura popular precisa ser uma totalidade que reúna, dialeticamente, dois polos distintos e às vezes antagônicos: ela tem que unificar os interesses imediatos do trabalhador individual com o interesse profundo e objetivo da classe operária e, dentro dessa mesma dialética, unificar os interesses particulares da classe operária com os interesses gerais de todo o povo.

A cultura popular "desalienada" não se confunde com nenhuma das manifestações da chamada cultura-para-trabalhadores. Ela não se confunde com arengas e pregações que visam mostrar aos trabalhadores tudo o que estão cansados de saber. Isso não acontece porque ela se funda no interesse real do trabalhador em adquirir a cultura capaz de elevar o seu nível de compreensão dos fatos sociais e que lhe permita ver para além das aparências, o que realmente se passa com as estruturas da sociedade. A cultura popular pode se concretizar de mil formas diferentes, no entanto todas servem sempre ao mesmo propósito último que é a educação revolucionária das massas. A cultura para trabalhadores também se atribui esta mesma finalidade, mas falha porque é abstrata, porque nasce da simples vontade, da vontade, em geral, de ensinar à massa o que ela tem de fazer. Trata-se de uma imposição feita às massas por um reduto esclarecido da intelectualidade. É vazia e inócua porque acredita mais no poder da verdade em geral do que na força das condições concretas da vida, de onde nasce a prática, esta capaz de realmente esclarecer a consciência da massa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a leitura destes dois autores, pudemos entender um pouco do fazer arte e da movimentação política brasileira, no período entre os anos 60 e 64. Deixam uma contribuição muito importante para compreensão dos movimentos realizados no período tanto no campo cultural como político. É uma leitura obrigatória para o estudante de ciências sociais, mas também aconselhada para o leitor descompromissado com disciplinas. A abordagem dos autores se complementa, pois enquanto Berlinck relata, narra o contexto em que surgiu o CPC da UNE, Ortiz analisa os pontos positivos e negativos e as contribuições do movimento para a sociedade brasileira. No trabalho utilizamos, algumas vezes, textos ao pé da letra dos dois autores, por considerar que assim seríamos mais fiéis ao pensamento daqueles, em vez de fazermos sua interpretação. Mas não se pode considerar plágio, pois estão devidamente referenciados


REFERÊNCIAS

BERLINCK, Manoel Tosta. Centro Popular de Cultura. CPC da UNE. S.L.: Papirus, S. D.

ORTIZ, Renato José Pinto. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.



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