OS NOVOS DEUSES (UM COMENTÁRIO SOBRE AMERICAN GODS)

Foto divulgação

Hoje quero falar de adoração, calma, não irei tratar aqui sobre as várias representações da espiritualidade e da metafísica que a humanidade desenvolveu ao longo de milênios, minha abordagem se dará, como sempre fazemos aqui, no âmbito do nosso cotidiano. Na antiguidade os fenômenos naturais foram representados na forma de divindades, os vários aspectos de nossa psique também tiveram sua cota de representatividade na forma de amuletos, totens, estátuas, textos e demais formas que a humanidade encontrou para supostamente ter uma ligação com o sobrenatural, seja a sua ancestralidade ou qualquer coisa relacionada ao seu mito criador. Sendo assim, podemos pensar hoje em pleno século XXI que os antigos eram tolos, primitivos, por demonstrarem sua devoção e adoração, mas será que estamos tão distantes deles? Não me refiro à diversidade religiosa ou a sua fé em particular, me refiro aos ícones e representações que nos encantam e seduzem desde que as novas tecnologias e formas inovadoras de entretenimento se desenvolveram e invadiram nossas casas e mentes

Entendemos objetos de adoração, ou então de devoção, apenas as imagens feitas de gesso que são características das religiões católicas e também as religiões de matriz africana, por favor, lembrem-se que não faço aqui nenhum julgamento de valor, apenas uma constatação, porém é inegável o papel desses elementos na liturgia de cada uma, e também quero salientar que outras religiões que não compartilham dessas práticas litúrgicas ou ritualísticas, também possuem seus objetos de devoção ou adoração, como por exemplo as segmentações protestantes, que apesar de não terem em seus templos imagens ou qualquer outro tipo de ídolo, mantém um padrão em suas construções e caracterizações, como por exemplo a cor que representam seus segmentos ou até mesmo a caracterização de seu texto sagrado. Escrevo estas linhas sabendo o quanto esse assunto é delicado, mas acredito estar sendo respeitoso com a fé, ou a ausência dela, de cada um de vocês. Saindo das questões religiosas, nós não podemos dizer que deixamos de lado questões relacionadas a culto e adoração, ora, você pode me perguntar, o que é objeto de culto fora dos templos? Muito mais do que imaginamos, isso eu posso lhe assegurar. Sem querer fazer propaganda gratuita, existe um autor chamado Neil Gaiman, conhecido por seus livros com temática ficcional e fantasia, é muito popular e conhecido devido em grande parte pelas adaptações de suas obras para outras mídias, como por exemplo, as tão populares séries que proliferam nos serviços de streaming, e também nos canais fechados.


Neil Gaiman (rapaz simpático não?)

Uma de suas obras em particular me chamou atenção, estou me referindo a American Gods. Ela é uma série de televisão americana criada por Bryan Fuller e Michael Green, e transmitida pelo canal Starz, baseada no romance homônimo de 2001 do já referido autor Neil Gaiman, e estreou em 30 de abril de 2017, e está em exibição até hoje (se você estiver lendo isso em 2021). Basicamente a história gira em torno do conflito entre os antigos deuses da antiguidade, com os chamados novos deuses, que são entidades da era moderna como por exemplo, a mídia, a internet e toda sorte de elementos de "adoração" por nós do século XXI. Mas você pode me dizer que não existem templos destinados a tais "divindades" e que esses novos deuses não passam de ferramentas e recursos tecnológicos criados por nós para nosso conforto e entretenimento, que na verdade nós estamos no comando. Não preciso aqui lembrar dos males e doenças causados pelo stress e a imensa carga de trabalho que todos nós somos submetidos, isso nos incentiva a buscar conforto de algum tipo, uns buscam refúgio nas instituições religiosas como já mencionei no início deste texto, mas outros preferem buscar conforto no consumo ou melhor dizendo no consumismo, ou até mesmo, em muitos casos, os indivíduos optam pelo misto das duas formas, ou seja, o profano e o sagrado, mas ambos com um nível de adoração equivalente, em algum nível, seja ele de maior ou menor intensidade. Ainda utilizando da metáfora dos novos deuses, em um dos episódios da primeira temporada, a Mídia, caracterizada de maneira a não ter uma forma única, assim como na vida real, diz ao protagonista que o seu "templo" e seu "altar" é toda tela e dispositivo que acesse conteúdos digitais, e é claro que não preciso lembrar o número astronômico que isso contabiliza, sem limite de tempo ou de horário.

Um comportamento automático e sequencial se estabelece, obedecendo padrões e regendo nossos horários e determinado o que faremos ou não durante nossos dias e noites, mesmo que inconscientemente, nós acabamos moldando nosso comportamento de acordo com algum exemplo, nos espelhando em determinado parâmetro que ratifica ou retifica nosso estilo de vida. Um exemplo prático é a estética, não há nenhum problema em termos cuidados com nossa aparência, a meu ver isso se torna prejudicial quando este passa a ser uma busca desmedida por aceitação por parte dos outros, a ponto de a pessoa se utilizar de meios cirúrgicos desnecessários e uso medicamentos de procedência duvidosa e uso indevido dos mesmos, mas mesmo quando cuidamos de nossa aparência de forma responsável, estamos buscando uma “graça” um beneficio especifico, o cuidado com o corpo se assemelha ao cuidado do espirito nesse quesito. A mesma relação é verificada nas relações profissionais, mais precisamente as hierárquicas destas, um bom desempenho em nossas funções e o cultivo de um bom relacionamento profissional com nossos colegas e superiores, também se caracteriza com uma liturgia, assim como nas demais instituições, religiosas ou não, o bom desempenho em alguma função ou tarefa tem por objetivo um beneficio, um presente ou se preferir uma graça a ser atendida.


Parte do elenco principal


Mas a metáfora que a série faz fica mais explicita, mas não exclusivamente, quando aborda as relações consumistas, no sentido de satisfação de desejos e vontades relacionados a vaidades e apetites, não que os exemplos citados por mim anteriormente não se enquadrem a este padrão, mas como se trata de uma adaptação que tem por objetivo ter o maior nível de audiência e alcance possíveis, ela tem que ser mais didática e clara na sua abordagem, coisa que os livros costumam ser mais cuidadosos, mas isso não tira a beleza do produto. Como leitura complementar quero indicar a leitura de dois textos, o primeiro se chama Ensaio sobre a Dádiva, de Marcel Mauss, e você pode ler uma resenha clicando neste link, o outro é um resumo do livro A ética protestante e o espirito do capitalismo, de Max Weber, esse de minha autoria e você a encontra clicando neste link, ambas as obras abordam esse comportamento de busca pela excelência, ou então da importância de se seguir certos protocolos ou liturgias para se conseguir um objetivo maior e além de suas forças unicamente, pelo menos quando os indivíduos assim o acreditam. Encerrando aqui mais esse exercício, convido a todos nós a fazermos essa reflexão, será que estamos mesmo tão distantes de nossos antepassados, no quesito metafisico das relações com o mundo e consequentemente a sociedade ao nosso redor? Será que mesmo as pessoas que se dizem não ter uma fé especifica, estão realmente isentas de algum tipo de devoção a alguma forma de representatividade de suas aspirações, medos e emoções? E se for, existe algum problema nisso? Espero que essa conversa não se esgote por aqui, muito obrigado e até a próxima!


Todo mundo misturado




Comentários